CIDADANIA NA ERA DIGITAL

Rafael Capurro
  
 
 


[1] Texto traduzido por Marco Schneider e Arthur Bezerra do original em inglês: Citizenship in the Digital Age, publicado em: Toni Samek and Lynette Schultz (eds.): Information Ethics, Globalization and  Citizenship. Essays on Ideas to Praxis. Jefferson NC: McFarland, 2017, 11-30. Publicado em: Adilson Cabral & Eula Cabral (eds.): Comunicação, Cultura, Informação e Democracia: Tensões e Contradições. Porto: media XXI, 2016, 49-75. (ULEPICC-Br)
[2] O autor agradece a John e Michael Holgate (Sydney) por suas críticas e 
ideias arejadas. Algumas delas são citadas neste texto.

 
 

 
Introdução

 
            Quem somos nós enquanto cidadãos na era digital? Esta pergunta diz respeito ao que está sendo chamado de cibercidadãos (netizens) ou cidadãos digitais, ou seja, pessoas envolvidas em todos os tipos de atividades que utilizam a internet, especialmente a mídia social, para fins privados ou públicos.[3]Mas o que significa cidadania, neste contexto? Quem são os destinatários quando nós (quem?) fazemos esta pergunta? É o cidadão de Estados democráticos? O conceito de cidadania tem mudado ao longo dos tempos, mas ele parece estar intrinsecamente relacionado 
ao mundo físico.

            Qual é a diferença entre ser um cidadão no mundo físico e no cibermundo? Cibermundo significa “um meio (eletromagnético) para a circulação de seres digitais (bit-strings)[4]em que nós, seres humanos, participamos, e através do qual também nos orientamos, direta ou indiretamente, por um código digital automaticamente executável" (ELDRED, 2012, p. 89).[5] Não é apenas um meio técnico – enquanto tal, pertence também ao mundo físico – mas, na medida em que nos relacionamos com ele, é um modo de nosso ser-no-mundo, ou seja, é um fenômeno existencial que diz respeito a quem e não só ao quê somos como seres humanos.[6] Esse bravo novo cibermundo inclui fenômenos como a mídia social, o hacktivismo, cibersexo, jogos online, moeda Bitcoin, Ebay, Skyping etc.[7] Uma nova civilização emerge, que precisa de um diálogo intercultural arejado, que não deve ser dirigido, como a palavra cibernético sugere, por velhos ou novos atores globais, mas que conceda mais liberdade de informação e comunicação, e que as pessoas controlem a si mesmas. Deixar as pessoas pensarem  livremente está no núcleo de uma futura ética intercultural da informação, que leva a sério as mensagens que vêm dos outros em um ambiente digital heterônomo. Até onde nós (quem?) podemos ir além dos paradigmas institucionais, legais e morais que orientam o nosso presente mundo físico? Parece que nós (quem?) precisamos de um novo tipo de pensamento para um futuro ser-no-mundo-(digital).[8]

            A pergunta "Quem somos nós enquanto cidadãos na era digital" aborda as seguintes questões: em primeiro lugar, quem somos nós enquanto cidadãos no mundo cibernético? Em segundo lugar, é o conceito de cidadania – qual? – traduzível do mundo físico para o mundo cibernético? Enquanto cidadãos do mundo cibernético, isto só nos diz respeito na medida em que interagimos com outros agentes humanos (e não-humanos?) dentro desse mundo? Qual é a relação entre cidadania no mundo físico e no mundo cibernético? Em terceiro lugar, qual é o significado do conceito de cidadania global ou cosmopolitismo antes e depois da ascensão do mundo cibernético?

            O objetivo deste trabalho é responder a essas perguntas a partir de uma breve visão geral sobre o conceito grego e o conceito romano de cosmopolitismo. A segunda parte é dedicada ao conceito de cidadania mundial em Kant, como um exemplo de um conceito moderno de cidadania que ainda permeia o nosso pensamento e realidade política, particularmente nos países ocidentais. A última parte trata do conceito de cidadania global na era digital.[9]

 

Sobre o conceito grego e o conceito romano de cosmopolitismo

 

            O filósofo cínico Diógenes de Sinope (404-323 a.C.), certa vez perguntado de onde vinha, respondeu: “Eu sou um cidadão do mundo (kosmopolitês)”.[10] Ele foi aparentemente o primeiro filósofo ocidental a identificar-se usando esse neologismo. Embora nenhum de seus escritos tenha sobrevivido, Diógenes é bem conhecido por ter desafiado, com seus ensinamentos e seu estilo de vida, os códigos de comportamento estabelecidos. Ele era filho de um profissional do mercado de câmbio e, como relata Diógenes Laércio, foi banido com seu pai por alegadamente ter falsificadodinheiro. Ele provavelmente entendeu errado o oráculo de Delos, que lhe disse que ele poderia mudar os costumes políticos (politikón nómisma). A palavra nomisma significa também moeda.[11] Por costume, desde o tempo de Clístenes (570 a.C.), a identidade de cada um baseava-se em seu local de nascimento.[12] Os romanos denominavam jus soli essa noção de cidadania, em contraste com o jus sanguinis ou direito de sangue, baseado na família ou tribo a que alguém pertencia. Diógenes rompe com o conceito de cidadania de Clístenes e cria um novo termo, no qual o conceito de cidade (polis) está relacionado ao universo (kosmos).[13] Kosmos é a verdadeira polis original, local de nascimento de todos. As leis (nomos) e os costumes (ethos) da polis são secundários em relação às leis do Kosmos. Isso não significa necessariamente que ele está defendendo algum tipo de mundo poliestatal. Isto seria, no mínimo, o oposto de seu estilo de vida. Ele entende a si mesmo como um ser cósmico ao invés de alguém sujeito a uma ordem política. Ele nega a primazia de Atenas e dos atenienses em detrimento de cidadãos oriundos de uma cidade provinciana como Sinope. Sua resposta é também um desafio à distinção entre gregos e bárbaros, já que todos os seres humanos são cidadãos do cosmos, isto é, do mundo compartilhado. Diógenes pode ter aprendido a respeito da primazia do kosmos sobre a polis através de Antífon, o Ateniense (480-411 a.C.), que escreveu:

 

Nós podemos examinar os atributos da natureza, que estão necessariamente em todos os seres humanos e são oferecidos a todos com a mesma intensidade, e a este respeito nenhum de nós distingue-se enquanto bárbaro ou grego. Pois todos respiramos o ar através de nossa boca e nossas narinas, e rimos quando nossas mentes estão felizes ou choramos quando estamos doloridos, e recebemos sons com nossa audição, e vemos pela luz com a nossa vista, e trabalhamos com nossas mãos e andamos com os pés (apud GAGARIN, 2002, p. 183. Ver também CAPURRO, 2007, p. 35)

 

            Esse conceito de cidadania cósmica foi posteriormente desenvolvido pela escola estoica. Pensadores como Cleantes (330-2030 a.C.) e Crisipo (279-206 a.C.) fundamentaram o cosmopolitismo na cosmologia e na ontologia racionais do pensamento helênico. Como observa Brown:

 

[...] De acordo com os estoicos, o cosmos como um todo é posto em ordem pela reta razão, e é um lugar onde os seres humanos vivem. Assim, o cosmos como um todo satisfaz a definição de “polis”. Essa é a doutrina estoica da Cosmópolis. Por repousar sobre ideais normativos que superam de longe o que a prática comum tenta satisfazer, pode-se muito bem supor que o estoico que se esforça para viver como um cidadão da Cosmópolis teria que se afastar da política comum. Com base neste pressuposto, “viver como um cidadão do cosmos” não seria nada mais do que uma metáfora para viver de acordo com o motivo certo que permeia a natureza – apenas uma metáfora para viver uma boa vida humana como o estoicismo entende. [...] No meu entendimento, Crisipo acredita de fato que para viver como um cidadão do cosmos, a pessoa também deve se envolver na política comum (onde for possível). Na verdade, eu proponho que, ao conceber como um cidadão do mundo pode se envolver na política comum, Crisipo inaugura efetivamente o ideal da política cosmopolita. [...] A política oferece a oportunidade de liderar através do exemplo (ou aconselhar aqueles que lideram) e para moldar leis que condicionem o comportamento, e porque ela tem esses poderes, é geralmente preferível se envolver com a política (BROWN, 2006, p. 10)[14]

 

            A diferença entre esse tipo de cosmopolitismo e aquele proclamado por Diógenes consiste, de acordo com Brown, no fato de que

 

Diógenes se imaginava “sem cidade, sem teto, privado de uma pátria”, e não é fácil ver onde o seu compromisso com a cidadania-mundo vai além dessa rejeição da cidadania mais local. Diógenes se propõe a ajudar as pessoas por onde passa, mas o seu cosmopolitismo assemelha-se mais com o caráter mundano de um nômade (BROWN, 2006, p. 17-18)[15]

 

            Hiérocles (século II) concebeu a cidadania como três círculos concêntricos, um em torno de si mesmo e da família, em seguida dos moradores da cidade e finalmente da humanidade. O sentimento de união dentro de tais círculos foi chamado oikeiosis, oikos significando casa ou lar.[16]Oikeiosis significa, para um filósofo estoico, o processo de chegar a uma vida “de acordo com a natureza” (secundum naturam vivere),[17] a natureza sendo nossa casa original e, portanto, a medida dos costumes da polis (cf. Raal, 2011). Kleingeld e Brown escrevem:

 

Em nenhuma parte o cosmopolitismo estoico foi mais influente do que no início do cristianismo. Os primeiros cristãos tomaram o mais avançado reconhecimento estoico de duas cidades como fontes independentes de compromisso e acrescentaram uma torção. Para os estoicos, os cidadãos da polis e os cidadãos da cosmópolis fazem o mesmo trabalho: ambos têm por objetivo melhorar a vida dos cidadãos. Os cristãos respondem a uma chamada diferente: “Dai, pois, a César o que é de César; e a Deus o que é de Deus” (Mateus 22:21). Deste ponto de vista, a cidade local pode ter autoridade divina (João 19:11; cf. Romanos 13: 1,4,7), mas o mais importante trabalho para a bondade humana é removido da política tradicional, deslocado para uma esfera na qual pessoas de todas as nações podem tornar-se “concidadãos dos santos” (Efésios 2:20) (KLEINGELD & BROWN, 2002, s/p)

 

            As mensagens das escolas cínica e estoica foram transformadas dentro do contexto cristão, contrariando, em alguns casos, as ideias originais. Em um locus classicus São Paulo afirma ser um cidadão romano (soma Romanus civis), ou seja, ter a cidadania romana, pelo simples fato de ter nascido dentro do Império Romano (jus soli):

 

Enquanto eles esticavam-no para açoitá-lo, disse Paulo ao centurião ali de pé, “É legal você açoitar um cidadão romano que ainda não tenha sido considerado culpado?” Quando o centurião ouviu isso, ele dirigiu-se ao comandante e relatou-lhe o ocorrido. “O que você vai fazer?”, perguntou. “Este homem é um cidadão romano”. O comandante dirigiu-se a Paulo e perguntou: “Diga-me, você é um cidadão romano (Romaios ei)?”. “Sim, eu sou”, ele respondeu. Em seguida, o comandante disse: “Eu tive que pagar um monte de dinheiro pela minha cidadania (politeian)”. “Mas eu nasci um cidadão (gegénnemai)”, Paulo respondeu. Aqueles que estavam prestes a interrogá-lo retiraram-se imediatamente. O comandante ficou alarmado quando percebeu que havia acorrentado Paulo, um cidadão romano. (Atos dos apóstolos 22, 24-29)

 

            Seguindo a resposta de São Paulo para a chamada da mensagem cristã, bem como a tradição greco-romana, Agostinho desenvolve uma dupla visão de cidadania. Os seres humanos são os cidadãos da “cidade de Deus” (civitas dei), bem como da “cidade terrestre” (civitas terrena).

            O conceito de cidadão do mundo é um conceito central do Iluminismo.[18] O antigo conceito de kosmopolitês encontra ressonância particularmente no conceito de “cidadania mundial” (Weltbürgertum), de Kant.

 

Sobre a cidadania mundial kantiana

 

            Kant desenvolve suas ideias sobre esse assunto no opúsculo “Paz perpétua: um projeto filosófico”. Segundo Kant, a paz perpétua só pode ser alcançada se os seguintes “artigos” forem realizados:

 

            - Em primeiro lugar, se a constituição civil de todos os Estados for republicana;

            - Em segundo lugar, se a “lei das nações” tiver por base uma federação de Estados livres;

            - E, em terceiro lugar, se “o direito de cidadania mundial” for “limitado às condições de hospitalidade universal” (KANT, 1975, Vol. 9, pp. 193-251).

 

            Kant está consciente de que a situação em seu tempo está muito longe deste objetivo. Ele escreve: “mas compare-se a essa perfeição as ações inóspitas do civilizado e, especialmente, dos Estados comerciais da nossa parte do mundo. A injustiça que eles mostram às terras e povos que visitam (o que equivale a conquistá-los) é realizada por eles em uma escala aterrorizante.” (KANT, 1975, Vol. 9, p. 42).[19]

            Isto, porém, não o impediu de procurar uma solução legal prática, a saber:

 

Uma vez que a comunidade mais restrita ou mais ampla dos povos da terra se desenvolveu a tal ponto que uma violação dos direitos em um só lugar é sentida em todo o mundo, a ideia de uma lei de cidadania mundial (“Weltbürgerrechts”) não é uma noção exagerada. É um suplemento para o código não escrito do direito civil e internacional, indispensável para a manutenção dos direitos humanos públicos e, portanto, também da paz perpétua. Ninguém pode jactar-se por acreditar que se possa atingir esta paz, exceto sob as condições aqui descritas. (KANT, 1975, Vol. 9, p. 46)

 

            Kant argumenta em favor de uma federação de nações livres (Föderalism freier Staaten), que reconheça as diferenças entre as pessoas e os Estados e, portanto, não vise homogeneizar as diferenças culturais num Estado de um só povo (Völkerstaat), mas em uma federação de Estados com seus povos (Völkerbund) (KANT, 1975, Vol. 9, p. 31). Em outras palavras, ele reconhece suas soberanias e as aproxima em torno da “ideia do federalismo” (Idee der Föderalität), que inclui uma “liga de paz” e um “tratado de paz” (KANT, 1975, Vol. 9, p. 35). Por que os Estados deveriam interessar-se em criar ou participar de uma tal liga? A resposta de Kant é surpreendentemente pragmática. Ele escreve:

 

Assim como a natureza sabiamente separa nações, que a vontade de todos os Estados, sancionada pelos princípios do direito internacional, poderia unir de bom grado pelo artifício ou pela força, nações que não poderiam ter se protegido contra a violência e a guerra por meio da lei de cidadania mundial unem-se por causa de interesse mútuo. O espírito do comércio, que é incompatível com a guerra, mais cedo ou mais tarde prevalece em cada Estado. À medida que o poder do dinheiro é talvez o mais firme de todos os poderes (meios) incluídos sob o poder do Estado, os Estados veem-se obrigados, sem qualquer imperativo moral, a promover a paz honrosa e por essa via evitar a guerra onde quer que ela corra o risco de estourar. Eles fazem isso exatamente como se estivessem em alianças perpétuas, pois grandes alianças ofensivas são, via de regra, pouco frequentes e ainda mais raramente bem-sucedidas (KANT, 1975, Vol. 9, p. 65)

 

            Há então, de acordo com Kant, uma estreita relação entre “a lei de cidadania mundial” (Weltbürgerrecht), o “espírito de comércio” (Handelsgeist) e “o poder do dinheiro” (Geldmacht). O cidadão cosmopolita de Kant não está sujeito a um mundo Leviatã dotado de um poder militar coercitivo e ele tampouco é um sujeito livre de quaisquer condições legais ou consuetudinárias. Essa forma de estar no mundo como cidadão é do tipo legal, não filantrópico. Baseia-se no direito à “hospitalidade” (Hospitalität, Wirtbarkeit), que ele define como segue:

 

Hospitalidade significa o direito de um estranho não ser tratado como um inimigo quando ele chega na terra do outro. Pode-se se recusar a recebê-lo se isto puder ser feito sem causar a sua destruição; mas, desde que ele ocupe pacificamente o seu lugar, não se pode tratá-lo com hostilidade. Não é o direito de ser um visitante permanente [Gastrecht] que se pode exigir. Seria necessário um acordo beneficente especial, a fim de dar a um estrangeiro o direito de tornar-se um hóspede por um certo período de tempo. É apenas um direito de estadia temporária [Besuchsrecht], um direito de se associar, que todos os homens têm. Eles o têm em virtude de sua posse comum da superfície da terra, onde, como um globo [Kugelfläche], eles não podem infinitamente se dispersar e, portanto, devem finalmente tolerar a presença um do outro. Originalmente, ninguém tinha mais direito que o outro a uma parte específica da terra (KANT, 1975, Vol. 9, p. 40).

 

            O fundamento do conceito kantiano de cidadania mundial é literalmente global no sentido de que nós, como seres humanos, partilhamos a superfície do globo (Kugelfläche), que é limitada, construindo assim a condição material para um cosmopolitismo que traz o eco de Diógenes, de Antífon e dos estoicos, mantendo em mente simultaneamente o desenvolvimento moderno do republicanismo e dos Estados soberanos. O cidadão do mundo de Kant não é nem um anarquista nem um idealista. Ao contrário, ele está sujeito à “lei da cidadania mundial”, sem fazer com que “todos os homens” se tornem, do mesmo modo, sujeitos a um poder coercitivo como no Estado-nação ao qual também pertencem. A “lei da cidadania mundial” permite a nós, seres humanos, irmos além das fronteiras nacionais, sem nos tornarmos expatriados ou perdermos qualquer tipo de proteção jurídica internacional. Em suma, o sujeito cosmopolita de Kant é livre para “visitar” outras nações e culturas e conhecer outras pessoas com base no fato de que todos partilhamos um pouco de terra sobre a qual nós existimos. Kant fornece, em outras palavras, um fundamento existencial do moderno conceito de cidadania mundial baseada na nação, que lhe permite ampliar o conceito e o alcance da liberdade para além das fronteiras dos Estados-nação sem nenhuma espécie de superpoder, que não só tornar-se-ia um perigo para a soberania de outros Estados, mas prejudicaria também a base comum sobre a qual residem a igualdade e as relações pacíficas entre as pessoas, bem como entre os Estados, ou seja, a terra comum, da qual ninguém pode reclamar a propriedade. A Terra como um globo é o nosso servidor comum e nós somos os seus hóspedes. “A lei de cidadania mundial”, escreve Kant, “deve ser limitada a condições de hospitalidade universal”, o que significa que ela deve ser baseada na liberdade mútua de encontro de uns com os outros, livre e legalmente reconhecida por uma federação de Estados e não com base na lei coercitiva de um mundo Leviatã.[20]

            Um cidadão do mundo é aquele que tem permissão para viver de acordo com esse tipo de liberdade e paz, que permanece frágil tendo por base um livre acordo sob o pressuposto pragmático de que as nações, bem como os indivíduos, têm um interesse prático em promover o “espírito de comércio”. É também uma solução pragmática, uma vez que não depende da perfeição moral dos indivíduos. Pelo contrário, a perfectibilidade moral pode lucrar com a hospitalidade universal. Como observa Kant, as sociedades humanas não são nem sociedades de anjos nem de demônios:

 

Mas isso é o mais difícil de estabelecer e ainda mais difícil de preservar, de modo que muitos dizem que uma república teria de ser uma nação de anjos, porque os homens com suas inclinações egoístas não são capazes de uma constituição de tal forma sublime. Mas precisamente com estas inclinações a natureza vem em auxílio da vontade geral estabelecida na razão, que é reverenciada mesmo sendo impotente na prática. Assim, é apenas questão de uma boa organização do Estado (que está ao alcance do homem), na qual os poderes de cada inclinação egoísta estariam de tal modo dispostos em oposição que um moderaria ou destruiria o efeito ruinoso do outro. A consequência para a razão é a mesma, como se nenhum deles existisse, e o homem é forçado a ser um bom cidadão, mesmo se não for uma pessoa moralmente boa. O problema da organização de um Estado, por mais difícil que possa parecer, pode ser resolvido mesmo para uma raça de demônios, desde que eles sejam inteligentes. O problema é: dada uma multidão de seres racionais que exigem leis universais para a sua preservação, em relação às quais, contudo, cada um está secretamente inclinado a se eximir, estabelecer uma constituição de tal forma que, apesar de suas intenções particulares estarem em conflito, eles possam observar uns aos outros, de modo que o seu comportamento público será o mesmo que se não tivessem tais intenções KANT, 1975, Vol. 9, p. 59-62)

 

            Kleingeld e Brown comentam:

 

Kant também introduziu o conceito de “direito cosmopolita”, sugerindo uma terceira esfera do direito público – além do direito constitucional e do direito internacional – em que Estados e indivíduos têm direitos, e onde os indivíduos têm esses direitos como “cidadãos da Terra” e não como cidadãos de determinados Estados (KLEINGELD & BROWN, 2002, s/p)

 

            A ideia de “direito cosmopolita” baseia-se no fato de que todos nós compartilhamos a mesma Terra esférica.[21] Além das formas de cosmopolitismo político, econômico e moral analisados por Kleingeld e Brown, gostaria de acrescentar a esta taxonomia duas outras formas, ou seja, o cosmopolitismo comunicacional e metafísico. Sobre essas questões, eu também sigo a trilha do pensamento de Kant.

            De acordo com Kant, só podemos entender a nós mesmos como indivíduos livres se temos permissão para comunicar livremente nossos pensamentos para os outros e vice-versa. Ele desenvolve essa ideia em “Uma resposta à pergunta: o que é o Iluminismo?” (KANT, 1975a), bem como em “O que significa orientar-se no pensamento" (KANT, 1975b). No primeiro desses opúsculos, Kant distingue o uso público do uso privado da razão, à primeira vista, a partir de um emprego contra-intuitivo da palavra “privado”. Ele escreve:

 

Em todos os lugares existem restrições à liberdade. Mas que tipo de restrição impede o esclarecimento, e que tipo não o impede, mas, pelo contrário, o promove? – Respondo: o uso público da razão deve ser sempre livre e só ele pode trazer o esclarecimento entre os seres humanos; o uso privado da razão pode, muitas vezes, ser bastante limitado sem, no entanto, estar particularmente impedindo o progresso do esclarecimento. Mas por uso público da própria razão eu entendo o uso que alguém dela faz como se fosse um estudioso diante de todo o público do mundo dos leitores. [“Vor dem ganzen Publikum der Leserwelt”]. O que eu chamo de uso privado da razão é aquele que alguém pode fazer com ela em um determinado cargo público ou escritório ao qual foi confiado KANT, 1975A, p. 485)

 

            O “uso privado da razão” de Kant (Privatgebrauch) refere-se ao uso restrito da razão quando as pessoas agem como sujeitos de algum “posto civil ou escritório”. As mesmas pessoas podem e devem fazer um “uso público” (öffentlicher Gebrauch) de sua razão (Vernunft), ao abordarem os seus pensamentos como um estudioso (Gelehrter) para o “mundo de leitores” (Leserwelt).[22] Kant estabelece uma dualidade entre pensar e agir como um cidadão (Bürger) versus pensar e agir, ou seja, comunicar, como um estudioso. Kant reconhece mesmo o “menor grau” de “liberdade civil” (bürgerliche Freiheit) se a “liberdade de espírito das pessoas (Freiheit des Geistes des Volkes) é preservada. Seu argumento é que “a propensão e a convocação a pensar livremente” (den Pendure und Beruf zum freien Denken) podem capacitar as pessoas e, no longo prazo, também o governo, para agir mais livremente (KANT, 1975a, p. 494). Em outras palavras, a cidadania global de Kant vai além das leis e costumes do Estado moderno, respeitando-os, mas também questionando seus limites. O instrumento para lutar pelo objetivo utópico de uma sociedade esclarecida é a sociedade construída por pensadores livres, a chamada “República das Letras” (Gelehrtenrepublik), a comunidade intelectual para além e através das fronteiras nacionais, comunicando-se por meio de escritos críticos (Schriften) e livres de censura, dirigidos ao “mundo dos leitores”. Ele se opõe fortemente à ideia de uma “constituição religiosa permanente que não pode ser publicamente questionada por ninguém, anulando, assim, um período de tempo no progresso da humanidade em direção a seu aperfeiçoamento, sendo, portanto, inútil e prejudicial para a posteridade.” Em outras palavras, a cidadania de Kant não é um fato, mas um processo, não menos do que a questão sobre “se estamos no momento vivendo numa época esclarecida”, cuja resposta é “Não, mas nós vivemos em uma época de esclarecimento” (KANT, 1975a, p. 491).

            No segundo opúsculo, “O que significa orientar-se no pensamento?”, Kant menciona (novamente) a condição básica para se ser um cidadão livre, a participação na “República das Letras”, ou seja, a “liberdade de pensamento” que implica a “liberdade de comunicar publicamente os pensamentos” (die Freiheit, seine Gedanken öffentlich mitzuteilen) (KANT, 1975b, p. 325). Não há liberdade de pensar sem a liberdade dos meios de comunicação através dos quais os pensamentos são trocados. De acordo com Kant, tal liberdade se opõe, em primeiro lugar, à “compulsão civil” (bürgerliche Zwang) vinda de uma autoridade política, não menos que, por outro, à “compulsão moral” (Gewissenszwang) vinda de uma autoridade religiosa, e, em terceiro lugar, a quaisquer tipos de leis, exceto às que a razão dá a si mesma (KANT, 1975b, p. 326). Este segundo conceito kantiano da cidadania, denomino cidadania comunicacional.[23]

            Finalmente, gostaria de mencionar brevemente o que eu chamo de cidadania metafísica. De acordo com Kant, os seres humanos são de natureza dual, ou seja, seres naturais (homo phaenomenon) e “numênicos” (homo noumenon). Este segundo aspecto é para Kant a fonte da moralidade. Como “seres intelectuais” (vernünftige Wesen, cf. KANT, 1975b) ou numênicos, nós somos membros do “reino dos fins” (Reich der Zwecke). Os membros de um “reino” desses têm uma “dignidade” (Würde) e não, como todos os outros seres, um “preço” (Preis). “Dignidade” significa ser um “fim em si mesmo”, obedecendo somente às próprias leis, ou seja, ser autônomo. A comunidade é composta por membros que têm um “dever” (Pflicht) no que diz respeito a tais leis seguindo a máxima moral de universalização. A comunidade também tem uma “cabeça” (Oberhaupt), que não está sujeita ao “dever”, sendo completamente independente (KANT, 1974, p. 74-79).[24] Eu chamo este conceito kantiano, de seres intelectuais pertencendo juntos ao “reino dos fins”, de cidadania metafísica. Esta dupla visão da natureza humana ecoa, no contexto da filosofia crítica de Kant, a diferença entre a “cidade de Deus” (civitas dei) e a “cidade terrestre” (civitas terrena) de Agostinho.

 

Cidadania na Era Digital

 

            Habermas (1995) criticou o sistema dual de cidadania mundial versus Estados-nação de Kant a partir de duzentos anos de perspectiva. No que diz respeito à cidadania comunicacional, Kant, de acordo com Habermas, não poderia prever a “mudança estrutural” de uma esfera pública transparente de cidadãos burgueses racionais, letrados e educados (bürgerliche Öffentlichkeit), em uma esfera pública “dominada por uma mídia eletrônica de massa plena de imagens e realidades virtuais semanticamente degeneradas” (HABERMAS, 1995, p. 11). Se Kant não poderia prever os meios de comunicação de massa, Habermas não foi capaz de ver o impacto da internet e a mudança estrutural da esfera pública que já estava acontecendo quando ele escreveu este ensaio (cf. CAPURRO, 2003). Segundo Habermas, Kant também não podia prever que as duas outras condições que ele (Kant) discute como necessárias à liberdade perpétua, ou seja, a forma republicana de governo e o “espírito de comércio” iriam degenerar em nacionalismos e guerra entre Estados democráticos e que o livre comércio levaria a imperialismos de diferentes tipos, à exploração capitalista global e a guerras civis. Mas Kant, por outro lado, estava bem consciente em sua época de questões que não são muito diferentes da situação atual, 200 anos mais tarde. Vale a pena citar mais uma vez o texto a seguir, desta vez por extenso:

 

Mas compare-se a essa perfeição as ações inóspitas do civilizado e, especialmente, dos Estados comerciais da nossa parte do mundo. A injustiça que eles mostram às terras e povos que visitam (o que equivale a conquistá-los) é levada a dimensões aterrorizantes. América, as terras habitadas pelos negros, as Ilhas das Especiarias, o Cabo etc., eram consideradas na época de suas descobertas por esses intrusos civilizados como terras sem proprietários, e seus habitantes como nada. Na Índia Ocidental (Hindustan), sob o pretexto de estabelecer compromissos econômicos, eles trouxeram soldados estrangeiros e os usaram para oprimir os nativos, incentivar guerras generalizadas entre os diversos Estados, espalhar a fome, a rebelião, a perfídia, e toda a sorte de males que afligem a humanidade.

China e Japão (Nippon), que experimentaram a visita de tais convidados, sabiamente recusaram-lhes a entrada, a primeira permitindo a aproximação em suas margens, mas não a sua entrada no interior, enquanto o último autorizou a aproximação de apenas um povo europeu, os holandeses, mas tratando-os como prisioneiros, não permitindo qualquer comunicação com os habitantes locais. O pior disso (ou, para falar com o moralista, o melhor) é que todos esses ultrajes não lhes renderam nada, uma vez que todos os empreendimentos comerciais estavam à beira do colapso, e as ilhas de açúcar, local da mais refinada e cruel escravidão, não produziam receita real, exceto indiretamente, apenas servindo a um propósito não muito louvável de fornecer marinheiros para as frotas de guerra e, portanto, para a condução da guerra na Europa. Este serviço é prestado aos poderes que fazem um grande show de sua piedade, e, enquanto eles bebem a injustiça como a água, consideram-se os eleitos no ponto da ortodoxia.

Uma vez que a comunidade mais restrita ou mais ampla dos povos da terra se desenvolveu a tal ponto que uma violação dos direitos em um só lugar é sentida em todo o mundo, a ideia de uma lei de cidadania mundial (“Weltbürgerrechts”) não é uma noção exagerada. É um suplemento para o código não escrito do direito civil e internacional, indispensável para a manutenção dos direitos humanos públicos e, portanto, também da paz perpétua. Uma pessoa não pode jactar-se por acreditar que se possa atingir esta paz, exceto sob as condições descritas aqui (KANT, 1975, p. 42-46)

 

            Emmanuel Lévinas e Jacques Derrida desenvolveram uma ética da hospitalidade que ecoa em certo sentido as tradições cínicas, estoicas, cristãs e kantianas do cosmopolitismo.[25] Essas tradições culminam no século XX com a criação da Organização das Nações Unidas, a Declaração Universal dos Direitos Humanos e do direito internacional e as instituições correspondentes. Organizações e iniciativas governamentais, intergovernamentais e não governamentais buscam diferentes tipos de respostas para desafios globais como a crise ecológica, as guerras religiosas, a crise do capitalismo, a fome no mundo, a pobreza e as doenças, juntamente com as experiências devastadoras de duas guerras mundiais e dos crimes contra a humanidade, antes, durante e após essas guerras e as subsequentes até o presente.

            O que faz a diferença para o cosmopolitismo de Kant não é apenas, como Habermas afirma, a ascensão da mídia de massa, mas particularmente a ascensão da internet. Peter Sloterdijk chamou a atenção para três projetos globais ou esféricos na história da Europa, começando com a globalização da razão na filosofia grega, que culmina na metafísica esférica de Hegel. Segundo Sloterdijk, a modernidade traz como que um segundo projeto global, explodindo os sonhos metafísicos. É um projeto físico cujo objetivo é descobrir e dominar a Terra, começando por sua circunavegação. O terceiro projeto de globalização é o digital atual, com predecessores na Idade Média (Raimundus Lullus, Nicolau de Cusa) e na Modernidade (Pascal, Leibniz) (cf. SLOTERDIJK, 1998; CAPURRO, 2007).

            Em um artigo recente, Rod Beckstrom, assessor-chefe de segurança da Samsung Electronics dos EUA e presidente do Conselho da Agenda Global do Fórum Econômico Mundial sobre o Futuro da Internet, escreve:

 

A parte mais difícil da explosão da conectividade não é a capacidade de conexão, e sim a forma como esta deve ser gerida. Devemos responder questões profundas sobre a maneira como vivemos. Todos devem estar permanentemente conectados a tudo? Quem possui quais dados, e como a informação deve ser tornada pública? O uso dos dados pode e deve ser regulamentado, e, se sim, como? E que papel devem desempenhar os usuários comuns, os governamentais e os empresariais na resposta a estas questões? Ao mesmo tempo, temos de nos proteger contra o excesso de regulamentação ou controle do governo. Isso pode exigir que eliminemos progressivamente a Internet Assigned Numbers Authority[26]para evitar que ela fique sob o controle de um organismo intergovernamental, como alguns Estados têm demandado. Governos certamente têm um papel importante a desempenhar. Mas muito controle quase certamente sufoca a inovação, aumenta os custos e, provavelmente, exclui importantes vozes anti-establishment. Uma abordagem melhor, e que iria aumentar a confiança do público no sistema, seria o estabelecimento de gestões diversificadas, com os agentes interessados, (BECKSTROM, 2014, s/p)

 

            Perguntar sobre “os direitos do homem digital” significa perguntar sobre a natureza do cosmopolitismo digital. Isso diz respeito a questões referentes ao controle internacional e à governança da internet por empresas privadas, como a Internet Corporation for Assigned Names and Numbers (ICANN). E acima de tudo, essa é uma questão de liberdade e de responsabilidade com base em regras de justiça e solidariedade. Beckstrom escreve:

 

No centro deste debate está a necessidade de garantir que, em um mundo onde muitos, se não todos, os detalhes importantes de nossas vidas – incluindo nossos relacionamentos – existem em perenidade cibernética, as pessoas possam reter ou reivindicar algum nível de controle sobre as suas vidas online. Enquanto o mundo do esquecimento talvez tenha desaparecido, podemos reformular o novo mundo de uma forma que nos beneficie, em vez de nos esmagar. Nossa tarefa principal é a construção de uma forma de vida digital que reforce o nosso sentimento ético e de valores existente, com segurança, confiança e justiça em seu âmago (BECKSTROM, 2014, s/p)

 

            Os processos sociais na internet atravessam as fronteiras dos Estados-nação e dos grupos internacionais de Estados que se mantêm como as bases da ideia política moderna de cidadania. É evidente que o mundo cibernético não é um tipo de mundo independente, como proclamado por John Perry Barlow (1996). Os direitos e deveres no mundo cibernético não podem ser isolados dos direitos e deveres no mundo físico. O cibermundo torna possíveis processos de hibridização cultural e interação social tanto quanto de isolamento mútuo (cf. Turkle, 2011). O caso da Agência de Segurança Nacional fornece a evidência da cidadania digital global transformando-se em vigilância global, sob a premissa paradoxal de que, no momento em que todos os cidadãos digitais devem ser considerados iguais no que diz respeito aos direitos e deveres, são separados em cidadãos norte-americanos, que, segundo a lei norte-americana, não devem ser objeto de vigilância digital, e do resto do mundo, sem consideração pelas leis de seus países. A partir desta perspectiva, o conceito de cidadania digital global se transforma no oposto dos ideais do Iluminismo. O perigo de homogeneização da população mundial não consiste apenas em seu controle e manipulação, mas também na exclusão de diferentes grupos e, de modo mais geral, na falta de respeito às diferenças culturais, histórias individuais e contingências que são a base para a singularidade e riqueza de indivíduos e sociedades humanas (cf. Dabag, 2000). A distopia oposta a tal homogeneização é o isolamento político, econômico ou cultural mútuo dos indivíduos e das sociedades, bem como sua desconsideração por qualquer tipo de responsabilidade pelo bem-estar comum e pela sustentabilidade do mundo físico e digital.

            Essa é a razão pela qual nós, na era digital, precisamos de um ethos transcultural com componentes democráticos que promovam ativamente a experiência intercultural, bem como um tratado internacional para o mundo cibernético no qual, seguindo a proposta de Kant, as diferentes partes interessadas concordem livremente. Ambos, o ethos e o tratado, a fim de serem flexíveis no que diz respeito à evolução e a situações não previstas, precisam de uma sólida pesquisa acadêmica sobre a ética intercultural da informação, dedicada particularmente à análise das diferenças culturais que fundamentam implícita ou explicitamente os costumes e as regras de comportamento no mundo físico e no digital (cf. CAPURRO, 2007, 2008; CAPURRO et al., 2012, 2013: HONGLADAROM & ESS, 2007).

            Tal ethos e um tratado ou declaração visam proteger a liberdade das pessoas que trocam pensamentos livremente, uma nova versão da “República das Letras” de Kant, como uma cidadania mundial comunicacional na era digital. A política pública pode oferecer a oportunidade para os cidadãos se encontrarem livremente em espaços públicos digitais sem as restrições e abusos das redes sociais comerciais que em teoria e prática se tornam mais e mais exemplos distópicos de cidadania digital gratuita. O mesmo pode ser dito em relação à realidade da vigilância política no mundo digital e físico também nas democracias ocidentais, ao contrário do que Kant sugeriu. Se as políticas públicas e da sociedade civil capitularem ou deixarem o campo da cidadania comunicacional livre para ser moldado  pela economia de mercado, então o conceito de cidadania na era digital pode tornar-se e está se tornando distópico, e as oportunidades abertas pela internet estão parcialmente perdidas. Os indivíduos e as sociedades no mundo cibernético devem ser legalmente protegidos, mas não de um modo excessivo e paternalista, e tampouco devem estar sujeitos ao controle total, sem qualquer tipo de acordo legal sobre a necessidade e os limites de tais medidas. O mesmo pode ser dito em relação aos global players comerciais no mundo cibernético, na medida em que não tomam conhecimento dos direitos dos indivíduos de esconder e revelar o que quiserem a quem quiserem. Uma rede social comercial transforma-se em uma gaiola (dourada) ou, no caso de usuários e acionistas tornarem-se cientes disto, termina em falência.

 

Conclusão

 

            Ser-no-mundo cibernético não é menos frágil do que ser-no-mundo compartilhando uma terra comum e sendo responsável cada qual pelo outro. O que está em jogo no que diz respeito à questão da privacidade na era digital é nada mais, nada menos do que a questão da liberdade em um nível local e global (cf. CAPURRO et al, 2013). Seguindo a máxima de Aristóteles (Met. VII, 1028a) e que “o ser se diz de muitas maneiras”, o conceito da cidadania em geral e da cidadania global e digital, em particular, não é menos ambíguo. O cosmopolitismo como cidadania mundial tem sido um “termo de combate” (Kampfbegriff) para diferentes escolas de pensamento (c. Zons, 2000), com conotações ambivalentes até hoje. A razão para essa ambivalência reside na tensão entre a contextualização histórica e a corporificação física da existência humana, por um lado, e, por outro lado, sua abertura para o mundo comum, partilhando uma terra comum. Essa ambivalência emerge no mundo cibernético com novas formas de polarização entre novas formas autênticas de estar-junto através e além das fronteiras físicas e suas fixações habituais e legais, e as inautênticas, nas quais a liberdade humana quase desaparece ao ser instrumentalizada por interesses políticos ou econômicos. O resultado nem sempre é algum tipo de frágil liberdade no cibermundo, mas diferentes tipos de ciberguerras.

            Um uso analógico do conceito de cidadania com base no seu uso moderno no mundo físico traduzido para o mundo cibernético pode levar a um novo tipo de iluminismo digital, mas ele também pode criar uma sociedade mundial homogeneizada. Um mundo Leviatã pode tomar a forma de uma liga de nações que concordam livremente sobre as regras de fair play e apoio mútuo, a fim de superar o que tem sido chamado fosso digital, mas também pode apoiar a criação de todos os tipos de monopólios, com base em normas e regulamentos, a fim de aumentar o lucro de uma empresa sem preocupação com a privacidade dos usuários e com o bem comum da sociedade.

            Indivíduos como Edward Snowden, confrontados com as contradições flagrantes das democracias ocidentais que se orgulham tanto de suas tradições liberais e cívicas quanto de suas defesas dos direitos humanos, sentem-se sob o imperativo ético de desvendar tais contradições. Esses indivíduos são um autêntico exemplo de cidadania digital. Eles não necessariamente proclamam um Estado-mundo utópico na base da transparência digital de todos os cidadãos sob o seu poder, mas, muito pelo contrário, estão bem conscientes de que a regra democrática de base no mundo físico e no mundo cibernético deve ser aquela que respeite a diferença entre público e privado, que é a liberdade de cada indivíduo escolher o que quer esconder e revelar sobre quem ele é (cf. CAPURRO et al, 2013). O desrespeito a essa liberdade cívica conduz a diferentes tipos de situações e formas totalitárias de exploração econômica e cultural, que não são diferentes das descritas por Kant, no século XVIII.

            O debate sobre os interesses globais e locais permeia não só a história da Europa e a história das ideias nos últimos 300 anos, mas também o presente debate sobre a forma atual e o futuro do mundo cibernético. O que nós (quem?) vamos considerar como comum ou como uma regra comum a todos no mundo cibernético, bem como na relação entre o mundo cibernético e o mundo físico? Quem está a instruir ou deve lidar com estas questões em nível teórico e prático? Que formas de mediações devemos (quem?) estabelecer? Tais questões não são a princípio técnicas, mas filosóficas e, particularmente, éticas. Elas tratam da transformação da relação entre os seres humanos e o mundo na era digital. Eu chamo isso de ontologia digital de transformação (cf. CAPURRO, 2006, 2008a; CAPURRO et al., 2012, 2013). Quem somos nós quando olhamos para nós mesmos (e nossos eus), bem como para todas as coisas do mundo como digitalizáveis? Se essa compreensão do ser passa a ser percebida como a única verdadeira, ontologias digitais transformam-se em metafísicas digitais ou, em termos políticos, em ideologias digitais (cf. CAPURRO et al., 1999).

            Novas formas de compartilhamento e de comunhão degeneram em distopias tecnológicas de uma monocultura global com cidadãos digitalizados. A tensão entre o mundo físico e o digital é perdida e com ela também a interação da liberdade humana referente a diferentes formas de esconder e revelar quem somos nos dois mundos. Nós (quem?) chegamos mesmo a nos identificar e a identificar nossos eus com nossos dados, que são, como qualquer outra forma de reificação, uma base para o intercâmbio econômico. Neste caso, a economia digital, tendo perdido a consciência sobre a liberdade humana e a interação social num mundo físico e digital comum, se transforma em um mundo panóptico.

            Se esse diagnóstico está correto, nós, enquanto pensadores, devemos dar um salto para trás na história do conceito de cidadania e de como chegamos a nos perguntar sobre isso na era digital. Devemos também pensar prospectivamente sobre quem são os beneficiários e os excluídos. Quem está fazendo mau uso ou exploração de indivíduos e sociedades inteiras no mundo cibernético tanto quanto no mundo físico. Se um Leviatã abusa de seu poder ad intra e/ou ad extra, e alguns delatores corajosos desvendam tais contradições, que tipo de mecanismos internacionais devem ser criados, a fim de lidar com estas questões, para evitar os mecanismos de cinismo. Não só a diplomacia política, mas todos os tipos de iniciativas ascendentes da sociedade civil, como o Centro de Educação e Pesquisa para a Cidadania Global da Universidade de Alberta,[27] têm a oportunidade de serem eficazes e eficientes, particularmente no campo da educação,[28] quando baseadas em um ethos comum de civilidade no mundo cibernético, bem como sobre acordos jurídicos internacionais. Ambos devem estar conscientes da fragilidade da liberdade humana e da terra comum como a base para o mundo físico e para o cibernético. Esta é a razão pela qual a questão da ecologia digital é fundamental, a fim de criar um ambiente físico sustentável para o mundo cibernético, tornando-nos também cientes de todos os tipos de exploração social em escala local e global em torno da questão do desperdício eletrônico (cf. CAPURRO, 2010).

            Alguns cidadãos digitais podem seguir Diógenes, outros preferem Crisipo. Ambos fornecem novos insights na tarefa de manter viva a tensão entre o mundo físico e o digital. Uma fenomenologia de mensagens e mensageiros como consciência das ocultas dimensões positivas e negativas do ser-no-(ciber)-mundo abre caminhos de pensamento para as atuais e futuras sociedades de mensagem (cf. CAPURRO & HOLGATE, 2011,)[29]  nas quais cidadanias locais e globais estão interligadas e as dimensões abissais de liberdade não se tornam invisíveis sob o manto digital (CAPURRO, 2012a, p. 104).

 

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[3] Ver Wikipedia

[4] Bit-strings – sequências de bits ou dígitos binários.

[5] O conceito de cibermundo (cyberworld) implica em um eixo espaço-temporal homogêneo e linear (ciberespaço e cibertempo) que contrasta com a espacialidade e com a temporalidade da existência humana no mundo físico.

[6] Sobre o conceito de whoness, ver Capurro et al. (2012; 2013).

[7] Ver Rolfe (2005) e Coenen et al. (2012). Comunicação pessoal de Michael Holgate (15.1.2014): “Através do qual nós também nos orientamos... o quê, quem? Talvez o conceito cibernético de controle e orientação que herdamos das Conferências Macy, da cibernética e do domínio matemático de Wiener, Shannon, von Neumann, von Foerster et al. precise ser finalmente atirado no mar. A nova onda de ‘digilectuais’ desde a década de 1990 e da Internet tem mais a ver com a devolução do controle ao cibercidadão individual do que com as agendas cibernéticas do Big Data, cujo bastião ideológico se baseia em controle, dinheiro, poder e vigilância. A Infoesfera de Floridi é apenas um sabor diferente desta agenda panóptica. A nossa experiência digital é emergente e fenomenologicamente além das ‘sequências copulantes de bits’ [Michael Eldred] e uns e zeros - perspectivas digitais / virtuais de ser-no-mundo são e devem ser heterônomas ao invés de hegemônicas. O que precisamos fazer agora é mapear as esferas desse novo mundo em toda a sua variedade de fenômenos – a mídia social, o hacktivismo, cibersexo, jogos online, moeda Bitcoin, a publicação eletrônica, Ebay, Skyping etc – como se fosse uma outra, uma civilização diferente – e então abordá-lo com uma minuciosa análise fenomenológica. Kant (ou Jesus ou Aristóteles) não pode andar uma milha em nossos ciber-sapatos. Parece que não podemos voltar para casa, ‘para a terra da ética tradicional’, enquanto os paradigmas e parâmetros (como para Thomas Kuhn) mudaram e estão mudando constantemente. Isto é, a ‘netiqueta’ é de uma ordem / categoria informacional diferente da etiqueta do mundo real. O ‘roubo’ de Snowden é de uma ordem diferente dos pequenos furtos de propriedade material. A atividade do Wikileaks é, de dentro do mundo cibernético, não roubar segredos, mas permitir o acesso e descentralizar o controle – um bem social, comunitário e informacional positivo."

[8] Conferir os primeiros passos da Ética Hacker, mais de 12 anos atrás (Chaos Computer Club 2002). A questão da liberdade no mundo cibernético permanece tão ambivalente quanto no mundo físico. Emergem diferentes formas de cibergnose e cibercultos, incluindo as visões quase religiosas de pan-informacionismo, singularidade (Ray Kurzweil) e diferentes formas de aprimoramento humano (cf. CAPURRO, 2012).

[9] Para uma análise concisa e abrangente do conceito de cosmopolitismo, ver Kleingeld e Brown (2002), Busch e Horstmann (1976) e Horstmann (1976).

[10] Diogenes Laertius VI, 63. Ver Capurro (1999).

[11] Diogenes Laertius, VI, 20ff.

[12] De acordo  com Cleistenes “transformou a organização política das quatro tribos tradicionais, baseadas em relações familiares, em dez tribos de acordo com sua área de residência (sua deme)."
[13] Comunicação pessoal de John Holgate (15.1.2014): “‘Rompe’ como? Por seu perverso e diagonal estilo de vida, Diógenes rompeu com os costumes da polis. Ele teve que ganhar a cidadania cosmopolita como o decadente Diderot citoyen du monde ganhou sua validade através de sangue e lágrimas vertidas na declaração dos Droits de l’Homme da Revolução Francesa. Diógenes e Assange partilham similaridades em seus comportamentos e, como Snowden, arriscaram expulsão e morte. Quem são os verdadeiros bárbaros de hoje? NSA (a agência de segurança norte-americana), Google e Apple – ou Anonymous, Avaaz and Wikileaks?”

[14] Agradeço a John Holgate por essas referências.

[15] Comunicação pessoal de John Holgate (20.1.2014): “Nosso querido amigo Vilém Flusser tinha sua própria versão de ‘cosmopolitismo nômade’, que ele considerava como uma virtude positiva em uma era de mídia global e comunicação transcultural. Flusser também viu a si mesmo, vivendo em exílio no Brasil durante a Segunda Guerra Mundial, como ‘sem-teto e sem uma pátria’.”

[16] Ver Stobaeus: Florilegium (1856). Ver também Forschner (2008) e Bailly (2009).

[17] Ver Sêneca, Epist. I, 5. Comunicação pessoal de John Holgate (19.1.2014): “Entre outras coisas, o conceito de 'natureza' parece correr paralelo ao pensamento cosmopolita – particularmente entre os estoicos, Rousseau, Marx etc. – e leva ao ambientalismo contemporâneo. Poderia alguém argumentar que ser um citoyen du monde é na verdade mais natural a seres humanos do que a instância nacional?

[18] Ver Busch e Horstmann (1976) e Horstmann (1976). Ver também o artigo de Diderot, Citoyen, na Encyclopédie, um ‘citoyen’ sendo aquele que compartilha direitos e deveres em uma dada sociedade livre (“C’est celui qui est membre d’une société libre de plusieurs familles, qui partage les droits de cette société et qui jouit de ses franchises”, cf. Diderot, 2002).

[20] Comunicação pessoal de Michael Holgate (MH) e John Holgate (JH) (15.1.2014): “A Internet, como um estado de natureza hobbesiano, não é para mim incompatível com algumas definições do federalismo no mundo digital. Creio que isto é assim porque a lei nacional / internacional já não pode dar conta de quaisquer agentes capazes de usar criptografia (ou seja, todo mundo). Este já é o caso. A questão mais interessante é a aplicabilidade de qualquer sistema de ética, onde a responsabilidade legal não pode existir. Há apelos no Vale do Silício para aproveitar um estado físico para empresários de tecnologia com fins muito assustadores, principalmente relacionados ao comércio” (MH). “Esta agenda assustadora do Vale do Silício é retrata no documentário de Adam Curtis, “Todos vigiados por máquinas de amor e graça” – a dinastia dos anos 1950 do MIT é perpetuada pelos supremos nerds de Google, Apple e Facebook. A ciberideologia é traduzida por eles em 'redes e conectividade' – um mantra tão sinistro agora para o cosmopolitismo digital quanto o do 'controle e feedback’ foi para as bases da democracia na década de 1960” (JH)

[21] Comunicação pessoal de John Holgate (15.1.2014): "Sim, a 'terra' tornou-se o foco, em vez do 'cosmos' ou da 'galáxia' ou do 'universo' – ligando cosmopolitismo com a natureza (como os estoicos faziam) e o mundo permite um ativismo ambiental fundamentado na bios, psique, nous e ser compartilhados. Temos acesso a afinidades sociais, culturais e espirituais, bem como aos recursos do 'planeta'. Hoje, a infantilização do nosso mundo mental é uma ameaça tão grande à civilização quanto a poluição da nossa terra física”.

[22] Comunicação pessoal de John Holgate (15.1.2014): “Isso abre o papel da leitura (como individuação) e da psique, privacidade e individualismo que estão no legado renascentista. A epistemologia digital adota a navegação, a varredura e a apreensão não-linear como o seu modus operandi, em vez da comunhão tradicional, com impressão de livros e textos, que no passado marcou o erudito cosmopolita. Agora, a competência informacional e computacional são pré-requisitos para o cosmopolitismo digital? A destreza computacional e a multifuncionalidade são habilidades necessárias ao homem renascentista digital? O mundo de leitores tornou-se o quê? A lista de inscritos para a Amazon ou Google Books? E a exclusão digital não é apenas entre as pessoas, mas está localizada dentro de nossos próprios hemisférios cerebrais, enquanto alternamos entre formas de “experiência” de leitura impressas e online. Eu gostaria de acrescentar que o papel da escrita e da experiência da escrita mudam não menos dramaticamente no mundo cibernético” (ver próxima nota).

[23] Comunicação pessoal de Michael Holgate (15.1.2014): “Sua descrição de hospitalidade universal e direito/cidadania cosmospolita é muito semelhante ao único impulso do projeto TOR: a capacidade de escrever sem medo de repressão, a invenção de um espaço sem censura de qualquer estado”. Ver

[24] Para a relação entre os “seres intelectuais” Kant usa palavras diferentes, como “systematische Verbindung”, “Verknüpfung”, “Beziehung”, bem como “Glied” (membro, link). A expressão “reino dos fins” (Reich der Zwecke) é construída em paralelo com o “reino da natureza” (Reich der Natur).

[25] Ver artigo Cosmopolitanism. Comunicação pessoal de John Holgate (15.1.2014): “A parábola do Bom Samaritano resume o cosmopolitismo cristão. As forças opositoras da soberania nacional, NIMBYism, do racismo e da ganância (particularmente na Austrália em relação aos estrangeiros que chegam de barco) tendem a controlar a agenda. Será que o mundo digital da mídia social e do ciberespaço é intrinsecamente algo melhor, partilha mais solidária ‘ou hospitaleira do que o mundo real’ em sua ênfase na conectividade e compartilhamento de recursos (Open Source, FEP, Linux etc.) operando em rede? Ou seus habitantes perdidos em quebras de código solipsistas, em jogos on-line, música I-pod, cibersexo e selfies de Facebook como o Eloi, os infantis hippies narcísicos infantis da Máquina do Tempo de Wells que se revelam impotentes e incapazes de serem hospitaleiros ou protegerem o Viajante da Internet? Enquanto isso, os Morlocks [N. do T. Os morlocks são personagens criados pelo escritor britânico H. G. Wells para seu livro A Máquina do Tempo.]" Ver Morlocks.

[26] Em português, Autoridade para Atribuição de Números da Internet. N. do T.

[27] Ver . Ver também Gasser e Zittrain (2013).

[28] Para Shultz (2013) o conceito de cidadania global é um código para pensar descolonizar relações educativas. Ver UNESCO (2013) e Grossmann (2013) e do Centro de Governança e Cidadania. O Instituto de Hong Kong da Educação. Ver também os conceitos de cidades inteligentes e cidadãos inteligentes (rack de 2013).

[29] Capurro & Holgate (2011). Comentário particular de John Holgate (15.1.2014): “Yes but third-order phenomenology emphasising experiencing and communicating angeletically beyond hermeneutic interpretation. We must throw ourselves into the “Abgrund der Digitalität” [abyss of digitality] and experience its forms by ‘be-ing’ in that world. We have to walk (and sometimes run) along the paths of thinking to discover the open spaces.” “Sim, mas fenomenologia de terceira ordem, enfatizando experimentar e comunicar angeleticamente [advérbio forjado com base no conceito de angeletics, de Capurro. Ver. N. do T.], para além da interpretação hermenêutica. Devemos lançar-nos na “der Abgrund Digitalität” [abismo de digitalidade] e experimentar as suas formas de ‘estar’ [be-ing] nesse mundo. Temos de andar (e, por vezes, correr) ao longo dos caminhos de pensamento para descobrir os espaços abertos”.


Ultima modificación: 1 - VII -  2017


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